terça-feira, 10 de setembro de 2013

Nunca houve uma mulher como Ode







Ode era minha mãe, mãe dos meus irmãos e, hoje descubro, mãe reivindicada por mais um monte de gente da minha geração. Morreu sábado, 31 de agosto, aos 85 anos. Deixou um caloroso fã-clube de todos que a conheceram. Era elegante, irônica, inteligente, dissimulada, generosa. Não perdoava traições, mesmo que imaginárias, mas não economizava gentileza. Uma mulher complexa como toda mulher, mas poética como toda mulher especial. Criou, praticamente sozinha, cinco filhos que, opinião unânime de quem os conhece, também se tornaram especiais.

Meu irmão Ricardo escreveu um obituário na Folha que diz tudo, mas condensado nas limitações de caracteres. Está aqui. Este post é, em essência, o artigo do meu irmão, que resolvi escrever por extenso.

Hoje em dia, é cada vez mais fácil matar e cada vez mais difícil morrer. Não nos deixam morrer em paz. Os hospitais e médicos sequestram nossos velhinhos e os transformam em reféns de uma maquinário cada vez mais caro e sofisticado para manter sobrevidas indignas, sob tubos e contas milionárias.

Teimosa, mamãe driblou sensacionalmente essa indústria e morreu do jeito que escolheu: em casa, na sua cama, dormindo. Estava respirando e parou de respirar. Foi simples, sereno, suave. Sem dor, sem drama e sem o martírio que o esquema do adiamento da morte nos submete. Vi tudo, estava segurando sua mão, como num quadro renascentista católico, justo eu, um ateísmo sobre pernas.

A saga

Ode nasceu num navio no rio Abunã, na fronteira do Brasil com a Bolívia, pois o pai dela era seringalista. Nasceu em berço de ouro. Aos oito anos, ela e a irmã mais velha perderam o pai e a mãe pela tuberculose, um pouco antes de a penicilina chegar ao Brasil. Foi criada por padrinhos malvados que roubaram as coisas da família e acabou aportando no Rio de Janeiro. Foi criada por outra madrinha má, que mantinha um grupo de órfãs em troca de rapinar as heranças.

Sua irmã Olaia conseguiu fugir, casar e resgatar minha mãe do cativeiro. Quando Ode tinha 16 ou 17 anos, sua irmã morreu e deixou três filhos.

Ode se viu só, ela e o mundo vasto e ameaçador, em guerra mundial.

Naquela época, uma mulher trabalhar era uma afronta à estupidez vigente. A hipocrisia social discriminava e punia mulheres independentes e só não as mandava à fogueira porque estava fora de moda. A pioneira Ode não quis saber de nada disso: respirou fundo e fez o que tinha de ser feito. Ode tinha três empregos, estudava música, sonhava em ser maestrina e correr o mundo. Trocou isso por criar os três sobrinhos.

Quando ela se casou com meu pai, um jovem jornalista recém chegado de Pernambuco (Josimar Moreira), ganhava mais do que ele. A caretice de uma família nordestina carola forçou a Ode a... parar de trabalhar! Mais uma vez, ela respirou fundo: Ok, bora fazer o que tem de ser feito. Fez cinco filhos.

Deu tudo certo: meu pai teve uma carreira meteórica que o colocou, com incríveis 26 anos, no posto de diretor-geral de um grande jornal, a Última Hora de Samuel Wainer. Morávamos bem, comíamos bem, dormíamos bem. Conviveu com a alta sociedade e as altas cultura e costura. O pesadelo da solidão de Ode parecia superado.

Mas aí houve aquelas reviravoltas de novela: em 1965, a ditadura ainda bebê, meu pai foi assassinado pelo presidente da Câmara dos Deputados, um tal de Bilac Pinto, que mandou seu carro oficial atropelá-lo às duas da manhã, no Rio, quando ele saía da redação do Diário Carioca, que dirigia. Quando dirigia jornais, meu pai tinha muitos "amigos", centenas, que entupiam nossa casa aos domingos, para comer, beber e bajular. Quando ele morreu, evaporaram quase que instantaneamente, com exceção de um ou outro anjo.

Ode estava novamente só, ela e um mundo vasto e ameaçador, o país em guerra interna. Desta vez, com cinco filhos, entre 2 e 13 anos.

Ela, cinco filhos, uma casa e só.

Mais uma vez vez, respirou fundo e fez o que tinha de ser feito, como uma samurai. Nos criou.

Como ela fez isso?

Até hoje me esforço para entender como ela fez isso. Ela voltou a trabalhar como funcionária pública com um pequeno salário. Não tinha máquina de lavar ou empregada, só o lendário apartamento da Rebouças, amplo, muito antigo e meio detonado, que foi palco do nosso crescimento e testemunha de muitas revoluções, artes e amores intensos.

Lembro que, no auge da dureza, teve uma ideia genial: alugou uma garagem do apartamento da Rebouças para um sujeito que vendia ovos numa carrocinha, para usar como estoque. Como ele pagava o aluguel? com ovos. Estava garantido o suprimento de proteína para a prole.

Uma parte da ditadura caiu graças ao apartamento da Rebouças e meus amigos que frequentaram sabem que a Ode sustentava e dirigia aquilo com absoluta liberdade e admiração pelas maluquices que seus jovens filhos aprontavam lá.

Uma vez, seus três filhos militantes foram chamados a depor no Dops. Minha mãe estava lá, para nos resgatar. Quando o primeiro foi liberado, o guardinha disse: "Pronto, minha senhora, pode ir embora". E ela: "Não, não. Tem mais um." Aparece o segundo, e o guardinha repete: "Agora sim, minha senhora, pode ir." Ela também repete: "Não, não. Tem mais um." Então lançava um olhar altivo para o guardinha estupefato e estúpido.

Trabalhando na Assembleia Legislativa, às vezes ouvia de colegas reacionárias comentários condenatórios sobre cabeludos. Fuzilava as pafúncias: "Meus filhos são cabeludos e entraram na USP. Os seus estudam onde?"

Muitas amigas nossas, jovens, eram amigas de verdade da Ode. Visitavam, tomavam chá, trocavam confidências e pediam conselhos. Muitas vezes eu chegava em casa e encontrava uma delas que estava lá para conversar com a Ode, não comigo ou meus irmãos. Minha mãe não as tratava como filhas, apenas como amigas.

Ironicamente, a Ode dizia nos últimos tempos que a época de que ela tinha mais saudades era dos tempos da Rebouças, justo quando éramos mais pobres. Já velhinha, ficou triste quando soube que derrubaram o predinho de três andares.

Então insisto: como ela fez tudo isso? De onde ela tirou as ideias e as espadas para lidar com tantos monstros ao longo da vida? Ela perdeu o chão três vezes: aos oito anos seus pais, aos 16 sua sua irmã mais velha, aos 37 seu marido. Como num filme de samurai, venceu. Seus últimos trinta anos foram tranquilos, confortáveis e felizes. Aquele bando que ela criou com garras e dentes virou antropólogos, revolucionários, jornalistas, artistas, empresários e viajantes. Todos deram certo e configuram uma matilha admirada. O Supremo de hoje, em sua suprema esquisitice, enquadraria a Ode no crime de formação de quadrilha.

Seu último monstro era a velhice. A visão, a audição e a memória recente começaram a morrer primeiro. Tocava pouco piano, pela dificuldade com a partitura. Mas conseguia tocar Chiquinha Gonzaga.

"Detesto hospital. Tenho horror a cadeira de rodas ou ficar estirada numa cama". Repetia esse mantra quase todo dia, para quem quer que estivesse à sua frente.

Sua última batalha foi há poucos dias, quando, após uma queda, teve de ir ao hospital. Não quebrou nada, acharam uma infecção; queriam achar mais coisas, queriam internar e mantê-la no calabouço tecnológico. Queriam sequestrá-la. Ela se recusava a ficar no hospital e tanto infernizou os médicos que eles acabaram liberando seu tratamento em casa.

Remexendo suas coisas, filhos e netos iam encontrando pequenos bilhetes, como pistas de ovos de páscoa: "As joias vão para..."; "Fiquem unidos"; "Os vestidos do Denner são de..."

Tenho certeza absoluta de que foi tudo planejado.

Quando você edita a própria biografia, e essa biografia é a da Ode, não se precisa de mais nada deste mundo.